Caminhada do Tejo

A PAISAGEM É UMA ESCRITA QUE SE INVENTA E REINVENTA SOBRE UM TEXTO ANTERIOR A PARTIR DO QUAL SE ESCREVE OUTRO TEXTO” (CARAPINHA, AURORA (2005), IN“ESCRITA NA PAISAGEM – FESTIVAL DE PERFORMANCE E ARTES DA TERRA”, P.9)

Esta caminhada tem como tema o Tejo e a paisagem que se foi tecendo, ao longo do tempo, nas suas margens, quer pela indústria e os bairros operários, como é exemplo o da COVINA, quer, pelo conjunto das vias de comunicação e dos “canais EPAL” – Tejo e Alviela – que determinaram a fragmentação das antigas Quintas e a quebra da sua “intimidade” com o rio. É neste momento uma paisagem expectante de uma nova narrativa a partir de uma leitura cuidada das páginas anteriores, mas, necessariamente, com os olhos no futuro …
No que resta das Quintas que atravessamos apesar de arruinadas, teremos, ainda, a possibilidade de desvendar alguns dos segredos da sua “arquitetura da água” e vislumbrar,  apesar de tudo,   a  característica paisagem das Quintas de Recreio do Vale do Tejo.


CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Embora a primeira indústria moderna se tenha instalado em Santa Iria, já, em 1877-Fábrica de Moagens (de cereal) de  João da Silva Ferrão – é só a partir do século XX , nomeadamente dos anos 30,  que as fábricas vão ocupando, de forma progressiva e contínua,  as salinas ,  que,  desde tempos recuados, existiam nas margens do Tejo.

A facilidade de escoamento dos produtos, da receção das matérias-primas por três vias – marítima, através de cais no rio, caminho-de-ferro e a estrada nacional 10 – e, ainda, a proximidade Lisboa, determinaram a fixação e densidade industrial na zona ribeirinha . Esta fez, quer pelas dificuldades para chegar às margens do Tejo, quer pela pouca atratividade da paisagem,   que a população local lhe  fosse voltando  as costas .   

No século XXI, à semelhança de outras povoações dos arredores de Lisboa, Santa Iria  perde muita da sua indústria  tornando-se um dormitório. No contexto da requalificação da zona oriental de Lisboa, no âmbito da Expo 98, começa a surgir, também aqui,  o anseio e oportunidade, através de politicas de requalificação urbana,  das populações se aproximarem da zona ribeirinha .  Não sendo ainda uma zona muito atrativa, começam  a surgir os primeiros projetos que permitirão, em Santa Iria,  voltar a viver o Tejo, como é, por exemplo, o trilho do apeadeiro ao antigo cais da BP.


DESCRIÇÃO DA CAMINHADA

Inicia-se no apelidado Castelo de Pirescouxe que, na realidade, é a ruína da antiga casa da  Quinta de Recreio da família Castelo Branco ,  cabeça do morgadio instituído nos finais do século XV  Para descermos até à zona industrial seguimos a ribeira das Carrizes, atravessando as antigas  Quintas do Castelo e das Duas Portas . No percurso, podemos admirar algumas das ancestrais s estruturas hidráulicas, o vale repleto de pequenos hortos e exemplares  arbóreos notáveis da flora autóctone, nomeadamente freixos e zambujeiros. Em cima do “Canal do Tejo“ contemplaremos, para norte a ribeira e as pequenas hortas; para sul a “bacia de retenção” e  as traseiras da fábrica do vidro, COVINA. Serpenteando as fábricas passamos pela “primeira fase “do Bairro da COVINA, edificado dentro dos limites da fábrica e destinado ao pessoal técnico. Continuando pela estrada nacional, atualmente rua das Marinhas do Tejo, chegamos às duas principais entradas da fábrica, à esquerda, a Saint Gobain Glass o complexo fabril mais recente, onde foi fabricado chapa de vidro plano de 1966 até 2012 e que está, atualmente, inativa. À direita, a “fábrica velha” e onde foi montado o primeiro forno mecânico de chapa de vidro em Portugal que laborou desde 1940 até 1986 ; Posteriormente e até 2021 , altura em que foi definitivamente fechada , funcionou aí a Saint Gobain Sekuirt Portugal que transformava o  vidro para indústria automóvel. Contornando a “fábrica velha” podemos ver o antigo centro social da COVINA abandonado e degradado, propriedade do Grupo Saint Gobain.

Para passamos o caminho-de-ferro, dirigimo-nos, em seguida, à ponte pedonal, localizada a poucos metros da fábrica. Do cimo aproveitamos para admirar  a bela vista panorâmica da cintura industrial de Santa Iria com o Tejo a seus pés:

– Olhando para norte, avistamos a “Fábrica do Açúcar “(Sidul) aí instalada desde 1967 que se destaca pela cor verde e singularidade da sua arquitetura. Embora construída de raiz, instalou-se, curiosamente, no preciso lugar onde em 1877 foi fundada a Fábrica de Moagens e, mais tarde, nas primeiras décadas do século XX,  a  primeira fábrica de açúcar : Refinação de Santa Iria Lda., (conhecida como Ferral ). Para além da antiga COVINA sobressai, á sua frente e do outro lado da linha férrea o complexo Fabril Unilever-FIMA. Instalado em 1968 nas “Marinhas de D. Pedro (a toponímia fixa a memória da anterior ocupação do território, bem como do seu proprietário: D. Pedro de Castelo Branco). Esta unidade  fabril que à data da sua instalação  em Santa Iria era considerada uma das mais avançadas tecnologicamente no segmento de  fabrico de margarinas, foi ampliando a  sua atividade  ao longo do tempo, sendo, na  atualidade, a única empresa que parece ir contra a corrente da decadência industrial da zona  :  Em 2014 foram investidos  30 milhões de euros para aumento da capacidade da unidade fabril que é a responsável, pela produção de gelados, margarinas, cremes para barrar e caldos – leia-se, por marcas, Olá, Vaqueiro, Flora, Becel, Planta, e Knorr.

Continuamos, seguindo paralelamente ao caminho-de-ferro até chegamos ao requalificado  trilho entre o apeadeiro  e o cais da BP, que nos leva para “dentro” do Tejo e nos permite   admirar o rio e a sua fauna. Seguindo o viaduto do IC2 atingimos, praticamente, um dos extremos da freguesia e também do concelho de Loures. Contornamos os terrenos onde estavam instalados os depósitos da BP, sendo ainda visível as zonas de contenção dos depósitos, e a antiga estrutura verde de enquadramento paisagístico (autoria de Gonçalo Ribeiro Teles). É interessante constatar em 20 anos a recuperação da natureza  através  da observação da flora  nativa das zonas ribeirinhas do Tejo, também,  em  zonas ocupadas até há pouco tempo pelos depósitos de combustível.

 Nas traseiras da refinaria e passando por mais alguns hortos chegamos à antiga ponte de acesso à BP sobre o caminho-de-ferro; de um lado temos o apeadeiro de Santa Iria , inaugurado em 1890 (?) e do outro a refinaria de açúcar com a sua ETAR.  Novamente na estrada nacional 10 , do lado contrário e defronte da SIDUL  atravessamos  um pequeno casario  que escondeu e manteve  um troço  do antigo aqueduto da fábrica de moagem  de João da Silva Ferrão  . Continuamos, subindo  o vale, tendo como  teto, o viaduto do IC2   até atingirmos  canal do Alviela; Este será o  traçado do caminho que nos conduzirá  até ao bairro da COVINA : Um exemplo característico desta tipologia de urbanismo associada á industria moderna que contempla, para além das casas para os trabalhadores, vários equipamentos sociais  como é o caso da capela localizada num pequeno promontório e a escola localizada na parte central, ambos  com vistas desafogadas para o rio  e  consequentemente fábrica . Uma das singularidades desde Bairro  foi a sua inserção no antigo olival do morgadio dos Castelo Branco , mantendo-se, em grande  parte, as oliveiras  aí existentes . Este pensamento- planear com o lugar, mantendo a  flora existentes  e utilizando na construção da paisagem as plantas autóctones –  inerente à 1º geração de arquitetos paisagistas permitiu a sobrevivência de um notável  exemplar arbóreo , ao qual foi atribuída, em 2011, pela Universidade de Trás-os-Montes  a idade de   2850 anos, que, obviamente,  não poderemos deixar de visitar e admirar .  Continuamos   por mais alguns metros em direção ao Castelo de Pirescouxe, onde daremos por terminada a caminhada, precisamente, no sítio onde se iniciou.

“O caminho faz-se caminhando”.

23 junho de 2019